sábado, 19 de janeiro de 2013

Tupperwares da Libertinagem

“(...) Cada parte de nós tem a forma ideal
Quando juntas estão, coincidência total
Do côncavo e convexo
Assim é nosso amor, no sexo (...)”
Roberto Carlos


Todo mundo aqui em casa sabe, que quando Idamara escuta Roberto Carlos é porque vai transar. Ela liga o aparelho de som na cozinha e prepara a comida que comerá no momento pós-coito.
“Comida de motel, além de cara, é horrível”, diz ela, enquanto meche o estrogonofe com a colher.
Depois o alimento mágico é armazenado em pequenos ou grandes tupperwares coloridos de plástico, que ela compra em loja de 1,99. Apelidados por nós de “Tupperwares da Libertinagem”.
O cardápio varia. Depende das preferências dos bofes – que em sua maioria, ela conhece na internet. Durante o bate-papo ela pesquisa o gosto do rapaz. Isso é algo primordial, me parece. Nunca transaria com um vegetariano, por exemplo. Não que eu saiba.
 Às vezes o tupperware é de bife acebolado, peixe a milanesa, macarrão... Mas normalmente, quem mais aproveita o rango, é ela mesma.
“Não sei o que acontece. Mas parece que a comida depois do sexo fica com um sabor ainda mais especial.”, ela diz.
Ida sente uma fome descomunal depois que transa. Ainda mais se o sexo for bom. Bem, não sei com vocês, mas comigo também é assim.
Às vezes, a comida é melhor – aí, chega a pensar na sobremesa antes de devorar o prato principal. É comum lembrar, enquanto trepa, da comida que a espera dentro da bolsa.
Idamara frequenta salas de chats para homens que gostam de mulheres gordas. É assim que conhece os pretendentes. Seu nickname é “pernocas_roliças” e vai logo deixando claro que procura aventuras sexuais. Quando envia suas fotos voluptuosas seminuas, logo encanta os pretendentes. Tem uma, especialmente, com um biquíni mínimo, na Ilha do Mel, que leva os caras ao delírio. O pequeno tecido, finíssimo e lilás, some no meio de suas imensas e lascivas nádegas, frente à imensidão do mar.
Quem tirou a foto foi uma amiga nossa, a Crislene. Cris é a pessoa em quem Idamara mais confia, depois de mim. Ela sempre nos conta todas suas aventuras. Quando manda mensagem dizendo “preparem-se para o babado”, já sabemos que tem história boa.
Sempre digo que um dia escreverei um livro sobre ela. Uma espécie de biografia não autorizada. Preciso começar.
A amiga capricha nas fotos. Tem umas no sofá da sala e outras na jacuzi também. Nessa da jacuzi, Idamara devora um baita hambúrguer com cheddar.
Suas curvas são muito bem delineadas por uma pele lisinha e sem manchas. Além disso, possui seios fartos que fascinam os favoráveis à fartura e tarados por auréolas gigantes. É difícil de encontrar um biquíni que tampe tudo.
A moça é gulosa tanto na comida quanto no sexo.
Tem rapaz que não dá conta. Se o cara é magrinho, normalmente é mais enérgico. Mas os pauzudos é que se dão melhor, porque enfiam mais fundo. Até porque a bunda é bem grande. Sei bem como é isso, porque sou bunduda também. Não tanto quanto ela, né, mas...
Ela costuma marcar os encontros em locais distintos, e normalmente no centro. Na Praça Osório, na Tiradentes, Largo da Ordem... Às vezes na Confeitaria das Famílias, onde pode já aproveitar e comprar umas guloseimas para incrementar a refeição. Os doces são prazeres à parte. Pudins, bombas, brigadeiros...
Dali ou vão para um motel, ou se o cara morar sozinho, para o apartamento dele.
Idamara não se sacia facilmente. Sua apetite é voraz, curte trepar durante horas. Já chegou até a achar que tivesse alguma doença, tipo eroto ou ninfomania. Mas a psicóloga disse que é normal e sugeriu que ela se masturbasse mais.
“Masturbação não tem graça” – ela diz.
Gosta mesmo é do sexo carnal, selvagem. Sentir o pau, pele, cheiros, líquidos...
Depois de horas devassas, nada mais justo que uma comida delícia, preservada em fantásticos tupperwares coloridos.
Acho que ela não vai gostar que eu conte isso. Mas teve uma vez que ela comeu um croquete de queijo um pouco antes de encontrar-se com um fulano, na rodoferroviária. E aí o croquete não caiu bem no estômago, e no momento que fazia um sexo oral, vomitou no coitado. Por sorte eles faziam dentro do carro, e o pobre tinha deitado o banco, bem relaxado, com a cabeça para trás e os olhos fechados. E ela me falou: “Isso nunca tinha acontecido comigo.” Depois me disse que rapidamente, meio que por instinto, engoliu novamente o croquete vomitado que tinha jorrado no pinto e barriga do cara.
“Até hoje não entendo como ele não sentiu aquela coisa quente e úmida regurgitada.”

Têm vezes que ela tem companhia - o bofe senta-se junto e manda ver. Outros ficam só olhando. Quando estão no motel, utilizam a mesinha perto da entrada. Mas já comeu até na cama.
Teve um sujeito que ficou excitado novamente só de vê-la comendo. Ficou tão impressionado ao assistir as possantes garfadas, que por baixo da mesa, chupou a buceta, fazendo-a gozar novamente enquanto comia. Idamara conta que nunca sentiu tanto prazer.
“Gozei no estômago e no clitóris. Ainda calhou de estar comendo um empadão de camarão – meu prato favorito”.
Já aconteceu também do sujeito pedir para enfiar durante a refeição.
“Também foi bom. O difícil foi coordenar as garfadas com o movimento de subir e descer.”
Quando o camarada é bom de garfo, senta-se junto e manda ver. Já pensando nisso, ela sempre carrega na bolsa talheres de sobra. E com o tempo foi aprendendo a preparar tupperwares maiores. Inclusive aqueles com divisões de espaços. Quando vai à loja de 1,99 é uma folia. O pessoal da loja já sabe e comenta:
“Ó lá, a senhorita tupperware.”
Idamara possui uma coleção enorme deles, dispostos lado a lado num armário da dispensa. Acho que não existe nome científico para este tipo de compulsão, mas eu e a Cris inventamos o termo “Tupperlove” pra isso.
“Nunca esqueço de um figura que gostou tanto, que repetiu e no outro dia pediu para almoçar lá em casa. Acho que ele gostou mais da comida do que de mim. Aliás ele virou meu amigaço, até hoje. Agora a gente nem transa mais. Semanalmente marcamos de almoçar juntos.”
Porém nem tudo é perfeito.
Semana passada, Idamara marcou um encontro na Praça Carlos Gomes e o cara não apareceu. Daí me mandou uma mensagem com a hadtag “chateada” e eu fui até onde ela estava. Encontrei-a sentada num banco da praça. Ela me contou tudo, abriu a tampa do tupperware, mostrando-me a lasanha a bolonhesa ainda quente. E falou:
“ Os tupperwares não aguentam tanto tempo assim...”
Ela me emprestou o garfo e faca que estavam reservados ao amante e comemos a lasanha, juntas, ali mesmo.  Triste, me disse que se sentia abandonada e sozinha.
Pode não parecer, mas Idamara tem um lado romântico pacas. A Cris sempre fala que o sonho da Idamara é casar.
Ela não reparou que eu vi, mas enquanto comia a lasanha, deixou escorrer uma pequena lágrima.  

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

De uma besta, um homem


Faz dois anos. Eu estava recebendo mensagens estranhas no celular e comentei com meu namorado, Rafael.
Algumas vezes eram poemas, noutras elogios. O fã assinava apenas como “seu admirador secreto”.
No começo mandava uma vez por dia, depois passaram a ser mais freqüentes. Dizia que era apaixonado por mim há tempo, mas nunca teria coragem de falar isso ao vivo.
Às vezes comentava detalhes sobre minha roupa, o que me levou a suspeitar que fosse da minha classe.
O problema é que não sabia nem se era homem ou mulher. Este negócio de assinar como admirador no masculino podia ser só para enganar.
Eu e Rafael passamos a observar todo mundo. Investigávamos quem não estava presente nos momentos que as mensagens chegavam, e ficávamos ligados nas pessoas que iam ao banheiro. Investigamos os celulares de todos os amigos mais chegados.  
Até comentamos o caso ao diretor, que recomendou que eu mudasse de número.
Fiz isso. Liguei na operadora e pedi pra trocar. Tive alguns dias de paz, até o admirador descobrir o número novo. Eu não entendia como ele conseguia tantas informações ao meu respeito.
O Rafa fuçou até o aparelho de um cara que eu namorei tempo atrás. Mas nada a ver, só demos uns amassos.
É uma coisa horrível receber mensagens anônimas. Eu comecei a ficar paranóica, achava que estava sendo seguida em todos os lugares. Olhava o rosto das pessoas no elevador, tinha a impressão que teria alguém do outro lado da rua, em algum carro escuro, perto de casa. Neurose total.
Teve uma vez que pedi para descer do ônibus em plena Avenida das Torres, muito longe de casa. É que eu pirei que tinha um sujeito fungando no meu cangote.
Também, cada caso que a gente ouve por aí...
Isso que dá assistir tanto jornal. Só desgraça.
Falei para minha psicóloga e ela me receitou uns calmantes para conseguir dormir.
O Rafael começou a ficar puto com esta história. Sugeriu que eu fizesse um boletim de ocorrência, mas eu preferi não envolver a polícia.
Até que as mensagens começaram a ficar pornográficas.
O “admirador secreto” dizia que queria me chupar por baixo da saia e que eu deveria abrir mais um botão da blusa para revelar o decote. Coisas deste tipo.
Passou a enviar mais de um SMS por dia.
As frases ecoavam na minha mente o dia todo.
Passei a dormir apenas quatro horas por dia e de luz acesa. Virei um zumbi do Walking Dead.
Não saía mais de casa com roupa decotada nem minissaia. Passei a me vestir feito uma freira.
Enquanto meditava no yoga, era assombrada por vultos.
Passei a ter pesadelos até acordada. Foi horrível!
Não fazia idéia de quem poderia ser o maldito.
E para piorar eu morava numa rua escura pacas. Pelo menos nunca me deparei com mané olhando nas janelas das casas.
Então Rafael sugeriu que eu começasse a responder as mensagens. Talvez assim “o”, ou “a” canalha soltasse alguma pista.
Morrendo de medo, fiz isso.
Mandei mensagens provocativas tipo:
“Que emocionante ter um admirador secreto. Dê-me alguma dica de quem você é!”
E ele respondeu apenas:
“Nada de dicas, princesinha”.
Princesinha?
Não conseguia pensar em ninguém que usasse este galanteio comigo. Coisa de pedreiro! E uma mulher não escreveria isso. Ou escreveria?
Rafael ficou muito bravo.
Depois o Sr. Mistério mandou mais uma comentando da cor do meu cabelo quando eu pintei de ruivo:
“Ficou linda, mas eu preferia loira”.
E o Rafa:
“Só mulher para reparar nisso!”
Perguntei se ele estava me vendo naquele momento, se estudava na mesma universidade ao menos.
Não respondeu.
Dois dias depois me mandou isso:
“Oh amor poderoso! Que às vezes faz de uma besta um homem, e outras, de um homem uma besta.”
Pesquisei na internet e descobri que foi escrito por William Shakespeare.
Eu e Rafa fomos então até a biblioteca e procuramos o livro que continha esta citação. Encontramos dois e nenhum deles havia sido retirado naquele dia. A não ser que o cara tivesse copiado o texto lá mesmo na Biblioteca ou visto na internet, como nós.
Esta história estava ferrando meu cérebro, já não conseguia nem mais raciocinar.
Foi o pior ano de minha vida.
Passei a ir mal nas provas e não conseguia prestar atenção nas aulas.
Pelo menos o diretor foi um fofo comigo e conversou com todos os professores.
Minhas amigas também deram a maior força colocando meu nome nos trabalhos.
Então teve essa outra também do Shakespeare:
“O amor não prospera em corações que se amedrontam com as sombras.”

Minha mãe contratou um guardinha, destes que percorrem os bairros de moto, apitando nos portões. Fiquei um pouco mais tranqüila. E só dormia com a TV ligada.
Mas isso não podia durar para sempre.
Percebi que a única maneira de descobrir quem era o sujeito, era marcando um encontro. O Rafael odiou a idéia.
“Está louca? Este cara é um sociopata. Só deixo você fazer isto se eu estiver junto!”
Mas foi exatamente isso que fiz. No meu plano, o Rafael estaria escondido por perto.
“Não sei não. Talvez fosse melhor avisarmos a polícia”. – preferia o Rafa.
Mas não queria envolver policiais neste assunto. Imagine que horror, meu nome nas páginas da Tribuna. De tanto que o Rafael insistiu, concordei em chamarmos o guardinha noturno. E só! Conversei uma noite com ele, expliquei a história meio por cima, e ele disse que podia ir junto, desde que pagássemos uma quantia. Aceitamos.
Comentei a história com minha amiga Paola também. Caso desse alguma merda, ela avisaria nossos pais.
Rafael arranjou um revólver. Acho que conseguiu com o Polenta. Credo. Quando me mostrou, não quis nem encostar. Mas acho que ele estava certo em se precaver.
Mandei uma mensagem pro louco falando assim:
“Tenho muita curiosidade em saber quem você é. Podemos nos encontrar reservadamente em algum lugar?”
Três horas depois, veio a resposta:
“Acho melhor não, princesinha. Você não vai gostar de mim.”
E rebati logo em seguida:
“Não seja assim! Como pode saber?”
E ele:
“Melhor continuarmos assim.”
Por esta eu não esperava. Não havia pensado na possibilidade dele não aceitar. Certamente o cretino era um covarde. Preferia ficar escondido, mandando mensagens de longe.
Viado! O único jeito de pegar o malandro seria atraindo-o para uma armadilha.
Como poderia ser?
Rafa me convenceu a continuar tentando. De repente ele estava inseguro, mas se eu mostrasse que realmente estava decidida a me encontrar com ele, ele cedesse.
Usei de uma artimanha psicológica. Comecei a elogiá-lo nas mensagens, numa tentativa de inflar o ego.
Escrevi:
“Um homem que conhece Shakespeare, só pode ser alguém adorável!”
E depois:
“Minha vida anda muito chata, quero a emoção de um encontro às escuras.”
Então finalmente aceitou e disse que podíamos nos encontrar, desde que ninguém soubesse. Sugeriu um lugar que fosse perto da minha casa, no Jardim das Américas, pois eram ruas bem vazias. Indiquei uma pracinha entre as ruas Ana Berta Roskamp e Frei Francisco Mont’alverne. Vinte e duas horas.
Ele pediu que eu fosse com uma blusinha vermelha decotada que eu sempre uso e me disse que ele estaria de paletó marrom e camisa branca.
Eu estava morrendo de medo, até pensei em desistir.
Mas o Rafa:
“Agora vamos até o fim! Estarei no carro, te observando a todo o instante. E teremos também Lineu, o guardinha, nos dando cobertura. Não vai ter perigo, amor. Vamos pegar finalmente o desgraçado!”
Isso me tranqüilizou um pouco, mas mesmo assim estava muito nervosa.
Passei o dia roendo o esmalte.
Contei pra minha amiga Paola e ela sentiu mais medo do que eu. Não acreditava que íamos mesmo fazer isso.
“Coisa de filme policial noir, disse ela.”
Para piorar, à noite formou uma neblina espessa.
Nove horas já não dava para enxergar os carros.
Saí de casa à pé. Combinei com o Rafa e o Lineu que não nos encontrássemos antes, pois o maníaco poderia estar à espreita. É como se ele fosse invisível. Caminhei sozinha durante meia hora pelas ruas escuras do bairro. Olhando para todos os lados. Poucas janelas acesas. Poucos carros na rua. Passou um ônibus amarelo no gás. Era o Santa Bárbara, o ônibus que eu sempre pego.
Cheguei na pracinha e não vi ninguém. Nenhuma pessoa, nenhum carro. Escutei a moto de Lineu passando numa rua lá em cima. Deu uma buzinadinha. Estava frio pra caramba. Me senti nua na escuridão. Nenhum sinal do carro do Rafa. Eu lembro que minha mão chegou a doer de tão forte que eu apertei a bolsa. Batimentos cardíacos acelerados, não sei como não tive um troço.
De repente apitou uma nova mensagem no celular.
Tirei o celular da bolsa e li:
“Estou te vendo, princesinha.”
E eu respondi:
“Onde você está? Porque não aparece?”
Nenhuma resposta. Tive um ataque de pânico e fugi.
Corri em meio às brumas, em direção à minha casa novamente. No meio da rua.
Um carro veio na contramão com luz alta.
Achei que era o Rafa, mas não.
Era o carro de meu pai.
“Que alívio”, pensei. “Estou salva!”
Entrei no carro. Como meu pai sabia que eu estava ali?
“Pai, você não sabe o que aconteceu. Preciso te falar!”
Ele acelerou e nos afastamos da pracinha, dando a volta na quadra, por outro lado. Vi o Lineu, na moto, passando por nós. Eu acho que ele não me viu dentro do carro.
Paramos em frente ao portão e aí meu pai, com a mão na minha coxa disse:
“Está tudo bem agora, princesinha!”