segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

De uma besta, um homem


Faz dois anos. Eu estava recebendo mensagens estranhas no celular e comentei com meu namorado, Rafael.
Algumas vezes eram poemas, noutras elogios. O fã assinava apenas como “seu admirador secreto”.
No começo mandava uma vez por dia, depois passaram a ser mais freqüentes. Dizia que era apaixonado por mim há tempo, mas nunca teria coragem de falar isso ao vivo.
Às vezes comentava detalhes sobre minha roupa, o que me levou a suspeitar que fosse da minha classe.
O problema é que não sabia nem se era homem ou mulher. Este negócio de assinar como admirador no masculino podia ser só para enganar.
Eu e Rafael passamos a observar todo mundo. Investigávamos quem não estava presente nos momentos que as mensagens chegavam, e ficávamos ligados nas pessoas que iam ao banheiro. Investigamos os celulares de todos os amigos mais chegados.  
Até comentamos o caso ao diretor, que recomendou que eu mudasse de número.
Fiz isso. Liguei na operadora e pedi pra trocar. Tive alguns dias de paz, até o admirador descobrir o número novo. Eu não entendia como ele conseguia tantas informações ao meu respeito.
O Rafa fuçou até o aparelho de um cara que eu namorei tempo atrás. Mas nada a ver, só demos uns amassos.
É uma coisa horrível receber mensagens anônimas. Eu comecei a ficar paranóica, achava que estava sendo seguida em todos os lugares. Olhava o rosto das pessoas no elevador, tinha a impressão que teria alguém do outro lado da rua, em algum carro escuro, perto de casa. Neurose total.
Teve uma vez que pedi para descer do ônibus em plena Avenida das Torres, muito longe de casa. É que eu pirei que tinha um sujeito fungando no meu cangote.
Também, cada caso que a gente ouve por aí...
Isso que dá assistir tanto jornal. Só desgraça.
Falei para minha psicóloga e ela me receitou uns calmantes para conseguir dormir.
O Rafael começou a ficar puto com esta história. Sugeriu que eu fizesse um boletim de ocorrência, mas eu preferi não envolver a polícia.
Até que as mensagens começaram a ficar pornográficas.
O “admirador secreto” dizia que queria me chupar por baixo da saia e que eu deveria abrir mais um botão da blusa para revelar o decote. Coisas deste tipo.
Passou a enviar mais de um SMS por dia.
As frases ecoavam na minha mente o dia todo.
Passei a dormir apenas quatro horas por dia e de luz acesa. Virei um zumbi do Walking Dead.
Não saía mais de casa com roupa decotada nem minissaia. Passei a me vestir feito uma freira.
Enquanto meditava no yoga, era assombrada por vultos.
Passei a ter pesadelos até acordada. Foi horrível!
Não fazia idéia de quem poderia ser o maldito.
E para piorar eu morava numa rua escura pacas. Pelo menos nunca me deparei com mané olhando nas janelas das casas.
Então Rafael sugeriu que eu começasse a responder as mensagens. Talvez assim “o”, ou “a” canalha soltasse alguma pista.
Morrendo de medo, fiz isso.
Mandei mensagens provocativas tipo:
“Que emocionante ter um admirador secreto. Dê-me alguma dica de quem você é!”
E ele respondeu apenas:
“Nada de dicas, princesinha”.
Princesinha?
Não conseguia pensar em ninguém que usasse este galanteio comigo. Coisa de pedreiro! E uma mulher não escreveria isso. Ou escreveria?
Rafael ficou muito bravo.
Depois o Sr. Mistério mandou mais uma comentando da cor do meu cabelo quando eu pintei de ruivo:
“Ficou linda, mas eu preferia loira”.
E o Rafa:
“Só mulher para reparar nisso!”
Perguntei se ele estava me vendo naquele momento, se estudava na mesma universidade ao menos.
Não respondeu.
Dois dias depois me mandou isso:
“Oh amor poderoso! Que às vezes faz de uma besta um homem, e outras, de um homem uma besta.”
Pesquisei na internet e descobri que foi escrito por William Shakespeare.
Eu e Rafa fomos então até a biblioteca e procuramos o livro que continha esta citação. Encontramos dois e nenhum deles havia sido retirado naquele dia. A não ser que o cara tivesse copiado o texto lá mesmo na Biblioteca ou visto na internet, como nós.
Esta história estava ferrando meu cérebro, já não conseguia nem mais raciocinar.
Foi o pior ano de minha vida.
Passei a ir mal nas provas e não conseguia prestar atenção nas aulas.
Pelo menos o diretor foi um fofo comigo e conversou com todos os professores.
Minhas amigas também deram a maior força colocando meu nome nos trabalhos.
Então teve essa outra também do Shakespeare:
“O amor não prospera em corações que se amedrontam com as sombras.”

Minha mãe contratou um guardinha, destes que percorrem os bairros de moto, apitando nos portões. Fiquei um pouco mais tranqüila. E só dormia com a TV ligada.
Mas isso não podia durar para sempre.
Percebi que a única maneira de descobrir quem era o sujeito, era marcando um encontro. O Rafael odiou a idéia.
“Está louca? Este cara é um sociopata. Só deixo você fazer isto se eu estiver junto!”
Mas foi exatamente isso que fiz. No meu plano, o Rafael estaria escondido por perto.
“Não sei não. Talvez fosse melhor avisarmos a polícia”. – preferia o Rafa.
Mas não queria envolver policiais neste assunto. Imagine que horror, meu nome nas páginas da Tribuna. De tanto que o Rafael insistiu, concordei em chamarmos o guardinha noturno. E só! Conversei uma noite com ele, expliquei a história meio por cima, e ele disse que podia ir junto, desde que pagássemos uma quantia. Aceitamos.
Comentei a história com minha amiga Paola também. Caso desse alguma merda, ela avisaria nossos pais.
Rafael arranjou um revólver. Acho que conseguiu com o Polenta. Credo. Quando me mostrou, não quis nem encostar. Mas acho que ele estava certo em se precaver.
Mandei uma mensagem pro louco falando assim:
“Tenho muita curiosidade em saber quem você é. Podemos nos encontrar reservadamente em algum lugar?”
Três horas depois, veio a resposta:
“Acho melhor não, princesinha. Você não vai gostar de mim.”
E rebati logo em seguida:
“Não seja assim! Como pode saber?”
E ele:
“Melhor continuarmos assim.”
Por esta eu não esperava. Não havia pensado na possibilidade dele não aceitar. Certamente o cretino era um covarde. Preferia ficar escondido, mandando mensagens de longe.
Viado! O único jeito de pegar o malandro seria atraindo-o para uma armadilha.
Como poderia ser?
Rafa me convenceu a continuar tentando. De repente ele estava inseguro, mas se eu mostrasse que realmente estava decidida a me encontrar com ele, ele cedesse.
Usei de uma artimanha psicológica. Comecei a elogiá-lo nas mensagens, numa tentativa de inflar o ego.
Escrevi:
“Um homem que conhece Shakespeare, só pode ser alguém adorável!”
E depois:
“Minha vida anda muito chata, quero a emoção de um encontro às escuras.”
Então finalmente aceitou e disse que podíamos nos encontrar, desde que ninguém soubesse. Sugeriu um lugar que fosse perto da minha casa, no Jardim das Américas, pois eram ruas bem vazias. Indiquei uma pracinha entre as ruas Ana Berta Roskamp e Frei Francisco Mont’alverne. Vinte e duas horas.
Ele pediu que eu fosse com uma blusinha vermelha decotada que eu sempre uso e me disse que ele estaria de paletó marrom e camisa branca.
Eu estava morrendo de medo, até pensei em desistir.
Mas o Rafa:
“Agora vamos até o fim! Estarei no carro, te observando a todo o instante. E teremos também Lineu, o guardinha, nos dando cobertura. Não vai ter perigo, amor. Vamos pegar finalmente o desgraçado!”
Isso me tranqüilizou um pouco, mas mesmo assim estava muito nervosa.
Passei o dia roendo o esmalte.
Contei pra minha amiga Paola e ela sentiu mais medo do que eu. Não acreditava que íamos mesmo fazer isso.
“Coisa de filme policial noir, disse ela.”
Para piorar, à noite formou uma neblina espessa.
Nove horas já não dava para enxergar os carros.
Saí de casa à pé. Combinei com o Rafa e o Lineu que não nos encontrássemos antes, pois o maníaco poderia estar à espreita. É como se ele fosse invisível. Caminhei sozinha durante meia hora pelas ruas escuras do bairro. Olhando para todos os lados. Poucas janelas acesas. Poucos carros na rua. Passou um ônibus amarelo no gás. Era o Santa Bárbara, o ônibus que eu sempre pego.
Cheguei na pracinha e não vi ninguém. Nenhuma pessoa, nenhum carro. Escutei a moto de Lineu passando numa rua lá em cima. Deu uma buzinadinha. Estava frio pra caramba. Me senti nua na escuridão. Nenhum sinal do carro do Rafa. Eu lembro que minha mão chegou a doer de tão forte que eu apertei a bolsa. Batimentos cardíacos acelerados, não sei como não tive um troço.
De repente apitou uma nova mensagem no celular.
Tirei o celular da bolsa e li:
“Estou te vendo, princesinha.”
E eu respondi:
“Onde você está? Porque não aparece?”
Nenhuma resposta. Tive um ataque de pânico e fugi.
Corri em meio às brumas, em direção à minha casa novamente. No meio da rua.
Um carro veio na contramão com luz alta.
Achei que era o Rafa, mas não.
Era o carro de meu pai.
“Que alívio”, pensei. “Estou salva!”
Entrei no carro. Como meu pai sabia que eu estava ali?
“Pai, você não sabe o que aconteceu. Preciso te falar!”
Ele acelerou e nos afastamos da pracinha, dando a volta na quadra, por outro lado. Vi o Lineu, na moto, passando por nós. Eu acho que ele não me viu dentro do carro.
Paramos em frente ao portão e aí meu pai, com a mão na minha coxa disse:
“Está tudo bem agora, princesinha!”

2 comentários:

  1. Preciso dizer o quanto ADORO esses contos? haha Muito bom, Fabz! Boa sorte com o novo projeto and to the infinity and beyond!

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